Ler, como muitas outras formas antigas de produzir nomes, era uma glória ambígua no Antigo Testamento: o mistério da palavra como aparelho de magia estatal foi o que forçou o ensimesmado – e um tanto escandaloso – rei Josias, dado a chiliques iconoclásticos, a reunir parte da literatura judaica de então sob a unidade do que viria a ser o Pentateuco. Muito provavelmente Josias sabia que a construção da identidade da nação – aqui entendida no sentido arcaico do termo, mas nos caberia investigar se o mesmo não se aplica ao nacionalismo moderno e contemporâneo – passava por uma espécie de perigo, o dessa máquina relativamente recente e cheia de imprevistos, que era a construção de uma literatura para um povo (uma das ideias mais terríveis e potencialmente conservadoras já inventadas, apesar das tentativas de lhe dar destinos mais revolucionários). Acontece – e não por acaso – que o empreendimento de fixar uma identidade através da domesticação da leitura, de sua costura política, está cravejado de aflições. Dá testemunho disso o próprio Josias, que, tendo pela primeira vez notícia da existência providencial de certos escritos hebraicos, antecipa os melhores episódios da saudosa Vera Verão n’A praça é nossa, e, segundo nos informam as Crônicas dos Reis de Israel, “ouvindo as palavras do livro da Lei, rasgou as suas vestes” (2Rs 22:11). De emoção? De pavor? De ódio? Por conta do calor das noites da Cisjordânia? Dirão os burocratas da teologia, os rabinos de padaria, os chatólicos e os tagarelas em línguas que rasgar as vestes é uma expressão que deve ser entendida em sua exegese. É verdade, mas é uma verdade sem graça – prefiro me agarrar aos meus anacronismos. Tudo isso para dizer o seguinte: se um livro não desperta, nem que seja por um estilhaço de segundo, esse perigo pressentido pelo nosso escandaloso Josias, essa ameaça de um poder de disrupção que a letra projeta para dentro da Lei no momento mesmo em que a enuncia, pervertendo-a, criticando-a, fazendo-a confessar sua loucura – então, esse livro deve ser abandonado.
(É claro que, como bibliófilo, sinto um certo prurido ao dizer isso. Tenho pavor de gente que diz que é preciso desapegar dos livros. Sou praticamente a Luisa Mell dos livros abandonados, quero logo achar um lar para eles. Tem dias que eu acordo com palpitações ao lembrar de um que, por descuido, emprestei a alguém sem cartas de recomendação. Acontece pouco, mas acontece. No outro dia assisti a um vídeo mostrando a prateleirinha do Leandro Karnal, a bixa mais cheia de dentes que a filosofia já viu surgir em seu pálido céu, e qual não foi minha surpresa ao saber que ele não só tem pouco mais que um punhado de péssimas edições e lamentáveis traduções – incluindo suas próprias, por assim dizer, obras –, mas se orgulha disso, faz dessa leviandade uma pobreza franciscana, uma virtude sapiencial. Mentira, não me surpreendi não: vocês já viram um outro vídeo dele, mencionando “o filósofo francês Michel de Foucault”? Será que ele confundiu com Michel de Montaigne? Quanto devem custar os dentes enfileirados desse homem, a única prateleira de que ele deve se orgulhar com motivo? Seja como for, tenho a pétrea convicção de que uma biblioteca nunca deve ser medida pela capacidade que seus donos têm de lê-la integralmente – isso é uma tolice e uma deficiência poética. Trata-se, antes, de um projeto utópico naquilo que as utopias têm de mais subversivo, a possibilidade de adiar a morte. Xarazad, a dona das narrativas das mil e uma noites, é, também, a imagem mais perfeita desse projeto que consiste em acrescentar mais um livro, mais um caminho antes de podermos ir embora. Xarazad é ela mesma uma biblioteca – não é gratuito o encantamento de Borges com sua figura).
Mas é louvável fazer todos os esforços para salvar uma narrativa que se fecha, estéril. É uma maneira inteligente, me parece, de assistir a um filme ruim, por exemplo, quando procuramos nele alguma coisa a ser salva, uma cena, um fotograma, um movimento de câmera, que seja. Peguem o Pasolini. Meu Deus, que tédio é Mamma Roma, que chatice infinita e acachapante é o Saló – pobre Sade!, que escreveu uma obra prima com o livro que lhe serviu de inspiração –, que palhaçada rastaquera é o Édipo Rei (aquela Esfinge parece caída dos cenários do Chaves ou do programa dos Trapalhões)! Não me venham falar da genialidade de trabalhar com atores amadores, da beleza da arte povera, de quanto é subversiva a erótica pasoliniana. Pasolini é um John Waters que não deu certo. Teorema jamais chegará aos pés de Pink flamingos. E quem é Silvana Mangano perto de Divine? Mas há um momento em Édipo rei em que uma porta se abre para outros livros: é quando Creonte, interpretado pelo excelente Carmelo Bene, começa a berrar ensandecido com Édipo, com os dentes meio apodrecidos, numa atuação completamente exagerada, quase engasgada. Os perdigotos de Carmelo Bene salvam o filme, inteiramente. Tudo que os exegetas de Sófocles abominam, eles elevam à categoria de arte. Ali, rasguei minhas vestes. Mas foi só – e isso basta para perdoar Pasolini.
Mas não cofundam o ilimitado com o indiferente. Também se fala muito da biblioteca infinita do Umberto Eco. O vídeo no qual ele caminha por suas intermináveis estantes é de fazer salivar um maluco como eu. Eu me pergunto se, no meio de tantas coisas, não há uma boa margem de porcaria. Há um documentário sobre sua relação com aquele lugar e com a ideia de biblioteca em geral, intitulado Umberto Eco, a biblioteca do mundo, de 2022 (tem no YouTube). Vale como divertimento. Nunca fui fã da escrita do Eco, mas aquela montanha mágica não é de se negligenciar. Contudo, é preciso lembrar: nem toda grande coleção de livros tem valor em si mesma, e no fundo é nisso que eu gostaria de insistir: há livros em que nada é salvo, seja porque nada está ali ou porque não temos os recursos para encontrar o que precisa ser resgatado.
(Eu raramente abandono um livro no meio. É o mais perto que chego da ideia de pecado cristão ou do bordão ginástico-circense no pain, no gain. Algumas poucas vezes o abandono após ler, mas, mesmo isso, faço com dor no coração, ou, como diz o primeiro Testamento, com os rins cingidos. Foi o caso, recentemente, com o Adua, da Igiaba Scego, mas aconteceu com ele o mesmo que aconteceu há uns anos com Nossa Senhora do Nilo, da Scholastique Mukasonga e Condições nervosas, da Tsitsi Dangarembga. Aos trancos e barrancos, terminei os três – livros relativamente pequenos, mas nos quais me demorei muito mais que o habitual. Não é que eu não tenha sensibilidade para a violência colonial e seus efeitos na formação dos indivíduos, seu tema principal – hipótese que levante contra mim mesmo, de início. Preocupava-me, é claro, o fato de não ter gostado justamente de três livros escritos por três mulheres pretas sobre a expropriação do imperialismo e sobre a perda compulsória da origem – questões que estão no núcleo dos meus estudos. Mas tenho contraexemplos. Amada da Toni Morrison, Tornar-se palestina, da Lina Meruane, Corregidora, da Gayl Jones ou Vasto mar de sargaços, da Jean Rhys, são, tratando de questões semelhantes, infinitamente mais interessantes para mim. Talvez o que nesses últimos desperta meu interesse seja o investimento na direção de uma linguagem anômala, a busca pela introdução da falência no gesto da escrita, que força um certo cansaço produtivo na leitura - o oposto da chateção lírica. As experimentações do livro de Toni Morrison, nesse sentido, são muito peculiares: elas exigem do leitor a compreensão através do cansaço, que não têm absolutamente nada a ver com tédio. Toni Morrison, como Gayl Jones, inverte a obrigação de reproduzir a memória do sofrimento, que consiste em uma das demandas mais comuns (embora justificadas) das narrativas que pretendem dar voz aos silenciados. Amada e Corregidora são personagens que encarnam essa demanda de atestar o horror como continuação da violência reprodutivista. “Esta não é uma história para passar adiante”, escreve Morrison no final de seu livro. E Ursa, a personagem de Jones, ao sofrer um acidente que a impede de ter filhos, enfim se vê livre da exigência de sua mãe e de suas avós de dar testemunho de suas origens e de seus sofrimentos.
Quer dizer: também faz parte de uma biblioteca infinita a possibilidade de mudar de rumo, de fechar uma seção, de se recusar a ir adiante, sem o que corre o risco de tornar-se apenas uma prateleira de supermercado. Do mesmo modo, as cenas das tardes modorrentas em Jean Rhys, que são quase sonoras (pode-se mesmo ouvir as cigarras estalando entre as palavras), insistem nessa necessidade de substituir o testemunho pela linguagem da imobilidade – uma maneira poderosa de falar sem falar. Apesar de Vasto mar de sargaços ser um livro profundamente descritivo, toda ação parece, nele, sufocada por uma espera congelada na contemplação apática das árvores, dos caminhos poeirentos – de modo brilhante. As ondas, da Virgina Woolf, tenta fazer isso. Mas cai na pasmaceira decadentista tardia, pois investe no lirismo dos adjetivos e acossa a linguagem com as malícias da narrativa interior. Uma chatice. O que eu não consegui alcançar com o livro da Igiaba Scego não é bem isso, mas se refere ao lugar-comum onde ela reinventa a violência, que certamente se revela, mas de modo paradoxalmente pouco disruptivo. Não basta ser gráfico e chocar: é preciso fazer rasgar as vestes).
Só um detalhe: como todo bibliotecário, Josias era um grande bravateiro. Morreu assassinado pelo rei Neco II porque se meteu na briga dele com os babilônios, uma das maiores baixarias na história antiga do Oriente Médio. Não sei bem por que, mas tenho certa simpatia por Neco II. Seu nome me inspira confiança: é fácil imaginar um Tio Neco, dando dinheiro de presente aos sobrinhos no Natal, falando com a boca cheia, dormindo no meio da missa. Tio Neco não gosta de bibliotecas com um livro só.
Estou igualmente viciado nesses vídeos de bibliotecas. Recentemente vi o da maria homem e a do contardo. péssima coleção, mas bela estátua e souvenires japonês na sala. Já a do Christian dunker me parece que exala um odor fétido aquela coleção dos pensadores que ele tem em uma prateleira. Cadavérico. Falando n!sso, a biblioteca da monga coen é a melhor de todas: livros em japonês (kanji, hiragana e katakana) que em dado momento do vídeo ela assume que não sabe lê-los, mas acha bonitos.