Primeiro tiro: Ao contrário do exoesquelético Gregor Samsa na Metamorfose, de Kafka, não costumo despertar de sonhos intranquilos, e, apesar dos esforços diários pela manhã, não me é tão comum lembrar por mais do que dois segundos o que se passou durante o lodaçal em que meu Stilnox me afunda toda noite. Por outro lado, graças ao patético capitalismo farmacêutico, ao qual me rendo em derrota humilíssima, não costumo acordar tanto ao longo da madrugada, mas, mesmo quando isso ocorre, não é como nos filmes – suando frio, levantando o tronco em pavor sufocante ou algo parecido. Contudo, entre um sonho e outro, experimento frequentemente uma lucidez absolutamente inútil, desconectada de qualquer articulação argumentativa, que, por algum motivo, permanece marcada na memória, milagrosamente, depois que acordo. Não que se trate de uma revelação grandiosa: meu despertar nessas ocasiões tem a qualidade quase gráfica de um quadro de um humorístico televisivo dos anos 1980. Em geral, apenas abro os olhos e viro para o outro lado, enquanto um pensamento ao mesmo tempo profundamente amolecido pelas drogas e sentido como inescapável me escapa pela boca, numa espécie de baba. Até aí a coisa poderia se salvar, mas o conteúdo desse minuto de reflexão interonírica é, na maioria das vezes, sem alcance e sem prolongamento: por um breve instante, me lembro de que a alça da minha bolsa está gasta e que ela causa em minha mão uma sensação estanha, ainda que não totalmente desagradável; penso no número sessenta e três, que não tem qualquer significado acessível para mim, e não adiantará de nada se utilizado para jogar no bicho (não tenho muita sorte com jogos); sinto uma necessidade terrível de abraçar um cachorro. E só: rapidamente, o Stilnox, como um guarda-noturno que tirava um cochilo e subitamente retoma o trabalho, me devolve ao nada morno da sonolência química. Não tenho tanto interesse pessoal pelos sonhos, mas muito por esses pensamentos desabrigados do meio da madrugada. Quem já leu os diários do Kafka sabe da curiosidade que ele tinha pelas duas coisas: ali, anota compulsivamente seus sonhos – muitos deles se passam, curiosamente, no teatro –, mas também se pergunta pela qualidade de suas reflexões quando está prestes a dormir, recém-acordado, moído pela insônia. Nesse intervalo de tempo em que os nexos com a memória e os planos futuros cedem, alguma coisa misteriosa acontece na relação entre desejo e linguagem. Muitas vezes pensei ter tido ideias excelentes nesse tempo irredutivelmente intermediário entre dormir e acordar, que depois se mostraram completa tolice. Mas seriam mesmo tolices? Penso no que Kafka anota em seu diário no dia 2 de novembro de 1911: “Hoje cedo, pela primeira vez desde muito tempo, de novo a alegria de imaginar uma faca girando no coração”.
Segundo tiro: Não ligo pra Lady Gaga, sinto muito. Mas sou completamente apaixonado pelo Sun Ra. Dirão os plantonistas da evidência que é uma comparação esdrúxula, injusta, sem pé nem cabeça, mas, como sou surdo para esse paradigma da realidade, retomo a divisa do velho Goethe, e afirmo que, se os fatos não corroboram as ideias, pior para os fatos. Comecei a escutar Sun Ra quando estudei música no Villa- Lobos, no começo dos anos 1990, e logo me irritei com o tratamento dado à sua performance, tida como excêntrica e apenas acessória à sua música. Suas roupas espaciais, a adoção de nomes e histórias intergalácticas e seu jeito de falar, acrescentados à confusão visual de sua presença no palco estão, ao contrário do que meus professores afirmavam, no mesmo nível de suas experimentações tímbricas e frasais. Essa surdez às vezes se agrava quando se trata de pensar o problema central da música de Sun Ra, que é o da indeterminação do movimento. Conheci uma pessoa que me disse, certa vez, que não aguentava ouvir Nuclear War (depois relida pelo Yo La Tengo em uma versão também muito interessante) justamente porque nada parecia ir para lugar algum em termos rítmicos ou melódicos. Mas alto lá!, quem confunde Sun Ra com Philip Glass merece, para citar o Noel Rosa, um tijolo na testa. Glass é um contemplativo dos intelectuais – quem aguenta, sem treinamento ascético, ver Koyaanisqatsi, filme insuportavelmente brega para o qual fez uma trilha sonora equivalentemente modorrenta? Já Sun Ra vive um delírio ativo, um modo de construir utopias que está ligado diretamente à tensão entre criar um mundo impossível e desafiar um mundo invencível. Em uma entrevista publicada no Washington Post em 22 de janeiro de 1982, ele diz: “Todo mundo aqui vive em uma prisão, mas eu tenho minha própria prisão, a prisão Ra. É a melhor prisão no planeta, todo mundo deveria desejar estar na minha prisão. Estou acorrentado aqui até fazer meu trabalho. Mas não preciso desse trabalho. É um trabalho difícil”. Cada frase dessa declaração está em relação com a outra no mesmo sentido dos versos de Nuclear War: “They talkin' about (yeah)/ Nuclear war (yeah)/ They're talkin' about (yeah) /Nuclear war (yeah) / If they push that button (if they push that button) / Your ass gotta go (your ass gotta go) / They're talkin' about (they're talking about) / This nuclear war (this nuclear war) / They're talkin' about (they're talking about) / Nuclear war (nuclear war)”. Só acredita que o centro de uma composição deve se desenvolver em alguma direção quem não percebe o sentido da prisão nuclear em que estamos: não há para onde correr (your ass gotta go), mas podemos andar em círculos em uma espécie de ritual utópico (yeah). Lá vem os plantonistas do real com suas pastinhas cheias de documentos e estrume mais uma vez dizendo que isso é a mesma coisa que nada. Os realistas são mesmo uns estúpidos quando se trata de pensar as dinâmicas do nada. Aliás, os realistas são estúpidos em tudo.
Terceiro tiro: Diante do filme de 2009, Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Karim Ainouz e Marcelo Gomes, muita gente se reconheceu na fala de Patrícia Simone da Silva, a prostituta entrevistada pelo narrador sem imagem própria, José Renato, que formula o conceito – a meu ver um dos mais importantes e originais do cinema brasileiro, ao estilo de Estamira – de vida-lazer: “...eu queria ter, realmente, meu sonho é tão alto nesse momento, era uma vida lazer para mim e para a minha filha e mais nada", e ela acrescenta, após a insistência de seu entrevistador em definir melhor seu conceito: “é triste a pessoa gostar sem ser gostada (...) Eu queria ter um amor só pra mim (...) apesar de todos os preconceitos que a gente tem de aguentar, bafo de cachaça, de cigarro, de outras coisas, mas o que importa é que a gente tem de dar valor e dar lazer a quem dá à gente”. Pululam interpretações sociológicas para a primeira parte da declaração – vida alienada na sociedade capitalista, precariedade mental e afetiva generalizada, consumo viciante do tempo na era das mídias sociais, sei lá o que mais –, mas quase ninguém se volta para seu corolário. Mais do que uma ideologia hedonista que propõe uma utopia, vida-lazer, é uma economia, na qual o sonho acontece dentro do pesadelo, a posse é o reestabelecimento da troca no interior da despossessão. E mais: é o reestabelecimento não exatamente da propriedade – isso é apenas um problema de vocabulário –, mas da intimidade. Filha, marido: o esquerdomachismo estrutural dos bem-pensantes viram aí a perpetuação da lógica da família. Mas a família sonhada por uma puta no interior do nordeste obedece a outras dinâmicas, muita mais complicadas e ricas em seu sentido do que podem decifram os althusserianismos ensaiados dos bebedores de cicuta contemporâneos. Para deixar claro: uma coisa são os althusserianos, outra, o Althusser, que é, de longe, um dos autores mais interessantes do marxismo do século passado. Se os althusserianos lessem sua autobiografia intitulada O passado dura muito tempo – que título incrível! – e fossem capazes de dar valor às neuroses do seu autor, de entendê-las como um método, talvez tivéssemos alguma esperança de sair dos congressos marxistas com um pouco mais do que meio baseado babado e dor de cabeça. Graças a Satanás já consigo realizar o sonho da maconha própria, não preciso mais dessa humilhação. Não sei se o Althusser concordaria com isso, mas tenho a impressão de que a Patrícia, sim. A segunda poderia dar àquilo que o primeiro escreveu no final do capítulo VII de suas memórias uma dimensão insuspeita: “faço questão de me ater, ao longo de todas essas associações de lembranças, estritamente aos fatos: mas as alucinações também são fatos”. Patrícia é a Aufhebung de Althusser porque entendeu que a loucura é o único fato.
Sirene da polícia: “Levar a linguagem à carnificina, liquidar-lhe as referências à realidade, acabar com ela – e repor então o silencia” (Herberto Helder em Phtomaton & Vox).
não conhecia Sun Ra... Embora seja uma grande fã da Lady Gaga, adorei!