“Dá-me mudez. E andar desordenado. Nenhum cão”.
Hilda Hilst, Sobre a tua grande face.
Ainda no século XIX, o rascunho de uma poesia de Hegel, à qual se assinala a data de 10 de dezembro de 1798, havia chamado, de passagem, a atenção de seu biógrafo Karl Rosenkranz, que a incluiu em sua obra sobre a vida do filósofo. Os onze versos que a compõem relatam uma cena banal – mas não por isso menos violenta – entre um poodle e seu dono, e acaba por se transfigurar em uma lição burguesa sobre o domínio da moral sobre os instintos. Eis o texto:
Er rennt in weiten Kreisen in die Schnee hinein, seine Rückkehr sind wir;
Er sucht in der Erde, er erblickt mich und schon hüpft er wieder an mich. Wo bleibt er?
Nun hat er Gespielen getroffen. Sie necken, fliehen und suchen sich;
Der jetzt jagte, ist nun Flüchtling. Doch sieh, zu weit rennen sie jetzt.
Hieher! Das Wort reisst ihn los vom Instinct und nöthig ihm zum Herren.
Doch eine Hündin zieht ihn wieder rechts. Halt!
Zurück! Er hört nicht. Der Stock wartet deiner. Ich seh’ihn nicht mehr.
An der Hecke schlecht er her, das böse Gewissen verzörgert die Schritte.
Zu mir! Du kreisest weit um mich, schwänzelst, er muss –
Habt Ihr noch nie gesehen was es heisst Müssen? Hier seh’t Ihr’s. Er kann nicht anders.
Du schreist der Schläge: gehorche dem rufenden Worte des Herrn.
[Ele corre em grandes círculos, em meio a neve, nós somos seu ponto de retorno;
Ele procura na terra, me vê e já salta em minha direção. Onde está?
Agora encontrou companheiros. Eles brincam, correm e se perseguem;
O que caçava agora é fugitivo. Mas, vê, agora correm longe demais.
Volta aqui! A palavra o arranca do instinto e o compele ao seu dono.
Mas uma cadela volta a atraí-lo. Para!
Volta! Ele não ouve. O bastão o espera. Não o vejo mais.
Caminha junto à sebe devagar, a má consciência atrasa os passos.
Junto! Tu me rodeias de longe, abana o rabo, ele tem de –
Nunca vistes o que se chama: Ter de? Aqui o vedes. Ele não pode fazer de outro modo.
Tu choras com os golpes: obedece às palavras clamantes do senhor]
A raça do cão de Hegel, um poodle, informada por Rosenkranz, talvez torne a cena um pouco mais cômica, para nós, que sobrevivemos a suas versões toy e à bizarra obsessão das décadas de 1970 e 1980 de pintar os machos dessa raça de azul e as fêmeas de rosa, além de lhes impor uma padronagem de tosa que os faz parecer bibelôs Biedermeier que latem. O poodle tem, contudo, uma história um pouco mais digna – mas não tanto – na Alemanha do século XIX. Isso não significa, é claro, que a relação com esses animais estivesse isenta dos efeitos da superioridade antropológica diante de uma forma de animalidade visivelmente fabricada – portanto, paroxisticamente artificial –, mas, ao mesmo tempo, exemplarmente doméstica, íntima.
Essa tensão entre familiaridade e estranhamento, autonomia do design e heteronomia da natureza, enfim, entre razão e instinto, configurou, de muitas maneiras, um dispositivo que sustentou continuamente as estratégias de poder da ciência moderna, em todo o espectro de suas consequências políticas, do racismo à eugenia, da neurolinguística ao especismo, do antissemitismo aos manuais de filosofia. Ele emerge, por exemplo, nos versos do Fausto, de Goethe, nos quais, após recriminar seu poodle pelos latidos e uivos (vv. 1238-1240), o personagem-título nota que ele muda, repentinamente de forma (“Das ist nicht eines Hundes Gestalt! [Isso não é uma forma de cão!]”, v. 1252), para se apresentar, logo em seguida, como o diabólico Mefisto. A aproximação entre os versos de Hegel e os de Goethe, já apontada por Rosenkranz, é índice de uma longa permanência do poodle no imaginário cultural e intelectual germânico. O próprio Goethe poderia ter alguma razão em temer esses cães. Sabemos, afinal, que suas objeções à encenação da peça Der Hund des Aubry [O cão dos Aubry], um melodrama de Ignaz Castelli, inspirado em Le chien de Montargis [O cão de Montargis], de Charles de Pixérécourt, no qual um poodle é o personagem principal, levaram à sua saída da direção do teatro de Weimar em 1817. Não menos significativa é a atitude de Arthur Schopenhauer, ao nomear todos os cães que tinha dessa raça com o mesmo nome, Atma, o que foi identificado por alguns de seus leitores como uma consequência de sua metafísica, que atribuía aos animais não-humanos uma parcela menor de individualidade Seja como for, a atribuição de alguma dignidade filosófica ao poema de Hegel não é um tarefa simples. Já se tentou encontrar aí uma alegoria do método dialético, através do movimento entre determinação natural, liberdade, saída de si e retorno a si, todos gestualizados no passeio do cãozinho.
Gostaria de me limitar a propor uma questão mais modesta, a de localizar o tipo de violência que essa passagem anedótica do poema hegeliano representa. Sabemos que, diferentemente de Schopenhauer, que parecia estimar, apesar de tudo, seus muitos Atmas, Hegel tomou esses animais como metáfora da condição de servidão. Sua correspondência com Caroline Paulus é atravessada tanto de imagens religiosas quanto de metáforas pejorativas ligadas aos cães: é assim que uma carta de janeiro de 1808 começa com uma referência a São João e se estende até a associação entre a ignorância e ser “mudo [ou tolo] como um cão [Hundedumm]”. Uma imagem semelhante surge no termo “cão vagabundo [Lumpenhunde]” em carta escrita talvez poucos dias depois. O próprio Hegel recorre, frequentemente, a um vocabulário e a uma imagética que reforça a imagem do cão como animal miserável, por exemplo, através da expressão vor die Hunde gehen, algo como jogar aos cães, arruinar. Por mais caricatural que seja essa atitude, ela é reveladora de um mecanismo de sujeição da alteridade que liga o poema de 1798 aos textos antissemitas que lhe são contemporâneos.
É, portanto, ao problema da autoridade da fala-do-Um, da partilha que ela instaura entre os vivos e os mortos, que os textos frankfurtianos de Hegel irão se remeter, e a passagem através dessa questão, que deve ser entendida como antítese de um passeio canino, se mostra configuradora do tratamento que sua filosofia posterior irá desenvolver em torno do problema da alteridade. Essa questão se traduz, de modo muito sintomático, na necessidade de definir o tipo de comunidade que se forma a partir da relação entre o Mesmo e o Outro – um tratamento sem o qual não será possível indicar a evidência da comunhão hegeliana, tanto daquela que foi objeto de suas reflexões quanto da que se formará em torno do seu nome. Retornamos, aqui, à intuição de Lukács a respeito da centralidade das questões políticas na crise de Frankfurt, mas, talvez, em um sentido um tanto mais específico: trata-se de pensar, bem antes da emergência do Espírito como conceito transfigurador, o tipo de ordem social que lhe prepara, qual a voz que funciona aí como autoridade e qual o lugar que, nela, ocupa a alteridade. O imbricamento dos temas da intersubjetividade, do reconhecimento e do direito já foram minuciosamente discutidos, especialmente na tradição representada por Ludwig Siep e Axel Honneth, mas, também, muito além dela, em Georges Bataille e Maurice Blanchot. Ainda que essas análises mostrem a importância do aspecto sociopolítico na construção da matriz de inteligibilidade do reconhecimento como posição fundamental da filosofia, elas não retrocedem, senão excepcionalmente, ao ponto de enfrentarem as hesitações do período de Frankfurt como parte dessa história, e limitam-se aos primeiros indícios de uma imagem mais sistemática do Espírito, produzida posteriormente nos escritos de Jena. Há, certamente, mudanças estruturais entre essas duas épocas, indicadas, por exemplo, na distância entre o problema da reconciliação entre indivíduo e comunidade, com o qual Hegel se ocupou entre 1797 e 1800, e aquele outro, o da mútua implicação entre o Mesmo e o Outro no âmbito da história do Espírito, que desponta no desenvolvimento imediatamente seguinte. Tal distinção, contudo, não nos isenta de avaliarmos a persistência de certos traços comuns entre as comunidades da Versöhnung, da reconciliação, e da Anerkennung, do reconhecimento. Minha hipótese é a de que esses traços se manifestam na economia da autoridade que o princípio unificador, em cada um desses casos, insere no discurso filosófico, ou, o que quer dizer o mesmo, no modo como a fala-do-Um duplica, ela mesma, uma vociferação, uma evidência da ordem social.
Ainda não estamos prontos para pensar as dinâmicas dessa vociferação como produtora de adestramento, e nosso rabinho sempre abanando quando ouvimos a palavra dialética acaba por denunciar que só esperamos que o Nome-do-Pai venha coçar nossas barriguinhas. Essa imagem do cão de familia, no entanto, não se produz sem um grande número de capturados na carrocinha do cânone, e há, sem dúvida, um ou dois rottweilers rosnando na frente de nossos hospícios. Resta saber se eles nos guardam de quem está la dentro ou se estamos dentro e eles nos impedem de sair. Enquanto não levarmos a sério a pergunta sobre a filosofia como latido, não teremos resposta para esse enigma.
Em 1936, é a autoridade furiosa de um cão que configura, ironicamente ou não, o espaço da crítica de Theodor Adorno contra o jazz: afinal, como sabemos, seu ensaio Über Jazz é assinado sob o pseudônimo Hektor Rottweiler, uma espécie de Aufhebung do poodle hegeliano, algo que, como conta seu biógrafo Stefan Müller-Doohm, Adorno pretendia usar como um disfarce diante dos nazistas. Esse disfarce, é claro, consistia em construir um personagem que pudesse passar despercebido na paisagem fascista da época, e o que talvez não se tenha considerado é o quão efetiva foi essa confusão identificatória. A tonalidade colérica do texto, que me parece intensificada em artigos da década de 1950, talvez esteja associada a uma certa vocação da teoria crítica de desarticular, de modo anti-intuitivo, certas categoriais sociais amplamente aceitas: o índice de seu ímpeto pode, portanto, ser adequadamente compreendido como uma resposta – não é, portanto, nesse ponto que reside o problema. Quanto ao paradigma geral de sociabilidade que sustenta essa operação de desarticulação, as coisas são um pouco mais complicadas. Ele se expressa na insistente afirmação segundo a qual o valor do jazz, enquanto exemplo privilegiado da música ligeira, de entretenimento, com pretensões de seriedade, consistiria em ser, sobretudo, resultado de um modo de produção social – um “Massenartikel”, uma commodity produzida pela indústria. O que se pretende assinalar, assim, é que um fenômeno musical, vulgarmente considerado como autêntica manifestação cultural popular, se revela um mecanismo de perpetuação da opressão do sistema capitalista tardio: lá onde se quer ver a inovação da improvisação ou a ancestralidade de uma origem que serviria para corrigir a decadência da modernidade, Adorno conduz esses pressupostos futuro e passado à lógica brutal do presente homogeneizador.
Se, bem mais tarde, Adorno pode reconhecer que o texto de 1936 guardava “a mácula do não-provado [den Makel des Unbewiesenen]”, ele permaneceu atribuindo os equívocos mais à ingenuidade com que a sociologia americana o leu, já que, de um modo ou de outro, haveria nele um “entrelaçamento de exterioridade e visão imparcial [Verschränkung von Outsidertum und unbefangener Einsicht]” (Idem, p. 705). É essa suposta imparcialidade que torna Adorno surdo para toda manifestação de resistência que o dominado possa constituir subjugado ao sistema dominante, entendendo qualquer coisa nesse sentido como mera repetição. É ela que caracteriza a dimensão racista do seu texto, digam o que quiserem os cães de guarda na porta do hospício. A pergunta sobre um modo de resistência próprio do subjugado – pergunta cara a Judith Butler, mas, antes dela, a Spivak – demanda, para ser formulada, uma patografia dessa surdez, que, no fundo, mas nem tão fundo assim, é hegeliana.
(Lista de animais que eu não gostaria que Noé tivesse autorizado a entrar na Arca: 1. Poodle; 2. Barata; 3. Gato).