Sou uma pessoa insuportável, e isso não é novidade para ninguém – só, às vezes, para mim. Entrei em 2025 com o firme propósito de denunciar o horror metafísico-comportamental que é o jovem-estudante-de-filosofia-fumante. Dirão vocês que é, no máximo, uma pretensão tola, e, muito provavelmente, uma tolice pretensiosa. Concedo – pouco se me dá. Já avisei aos meus alunos que só serão orientados se pararem de fumar: é a esse nível de ridículo que minha autocondescendência me levou. (Não vai dar em nada, como sempre).
Quer dizer: fumar é uma ideia brega desde que Bette Davis recebia uns trocados para fazer cosplay de Caboclo Sete Flechas nos filmes da década de 1930. (Abro uma exceção aqui para o próprio Caboclo Sete Flechas, e mesmo assim em terreiros fora da zona sul e da zona norte do Rio de Janeiro). Não me levem a mal: não se trata de zelar pela saúde como um ideal ascético, mesmo considerando meio patético o atual gosto pela decadência física entre os leitores de Nick Land. Correr, digamos, seis quilômetros três vezes por semana também é brega, e todos sabem que exercícios físicos fazem mal à saúde. (O que dizer dos fumantes que correm seis quilômetros três vezes por semana? Independência ou morte?) O problema é outro: o cheiro. A atual alternativa, pelo que eu sei, aquele cachimbo espectral que chamam de vape, é esteticamente humilhante e entendo o constrangimento dos jovens-filósofos-viciados em passar para essa versão rave-das-big-techs (não me surpreenderia se os frequentadores dessas raves também lessem Nick Land). Talvez seja melhor mesmo ser fedorento. Capturados por essa triste situação, muitos jovens-filósofos-fumantes resolvem transformar a indigência em estilo, uma tendência que saiu de moda já no início dos anos 1990, quando foi substituída pela igualmente detestável onda clubber.
(Meu avô fumava um cigarro que deixava o dedo e o bigode dele amarelos e que só vendia no híbrido de barraco com boteco lá nos confins de Campo Grande, onde eu ia, vez ou outra, comprar bala velha e meio melada: o nome dele (do cigarro, não do meu avô) era Craque – sua embalagem, que ainda acho linda, era vermelha, com um jogador de futebol desenhado. Nessa mesma época, meu pai fumava Continental, o mesmo que minha avó consumia às toneladas. Eu mesmo já fumei maconha o suficiente para não ter o direito de recriminar ninguém. Mas não estou recriminando ninguém; estou fazendo chantagem, que é bem mais digno).
Prova de que não se trata de um problema moral contra o vício em si é meu total apoio ao alcoolismo. Meu pai, além de fumante, é um alcóolatra inveterado, e, mesmo assim, entendo a opção (a dele e a de quem mais quiser) de se entregar integralmente, misticamente, à bebida. Sofri todas as misérias que ter um pai pobre e alcoólatra poderia trazer consigo. Conheço o potencial destrutivo do cachaceiro passivo-agressivo, sem falar dos violentos, que não conheci em minha casa, mas na de muitos vizinhos. Não defendo o vício, mas compreendo a opção existencial diante de um mundo que já não se pode segurar com dedos finos. Eu poderia dizer o mesmo da cocaína, mas na qualidade de um quase-ex-usuário (mais uma figura lastimável), tenho de admitir que, pelo menos entre os filósofos, a cocaína é, quase sempre, só o sintoma de uma condição mais abominável e mais insuportável: o existencialismo. Mesmo que se trate de pós-estruturalistas renegando o existencialismo. Mesmo que sejam filósofos analíticos, ou que queiram passar a vergonha de dizerem que não são nem analíticos, nem continentais. Mesmo que se trate de leitores de Nick Land. Todos existencialistas.
(Ok, me coloquem numa sala com dois fumantes, bem próximos das minhas narinas, mas nunca com dois existencialistas).
Para piorar a situação, a recente reversão simbólica que fez com que o cigarro se transformasse, mais uma vez, na muleta fálica de uma geração inteira de brochas veio acompanhada de um novo espasmo cíclico do hegelianismo. O jovem-filósofo-baforador agora tem orgulho da nicotina e da dialética! A essa hora da noite e o pessoal se apoiando em duas pirocas paradoxalmente castradoras, francamente! Um calor de setenta graus no Rio de Janeiro, de mil e quinhentos graus em Gaza, e ninguém abrindo os olhos para essa fraternidade heteronormativa entre uma guimba de Lucky Strike e um parágrafo ao final da Fenomenologia do espírito. Sim, digam o que quiserem os neohegelianos de esquerda (Independência ou morte?), mas só faz uso da dialética quem nela deposita seu heteronormativismo. (Ai, Bottini, eu sou mulher, eu sou bixa, eu sou travesti e sou hegeliana, e aí? – Síndrome de Estocolmo ou Estrabismo Estético. Caso encerrado. E é, sim, preciso cortar todas as pirocas que existem no mundo, já que todas são simbólicas).
Meu argumento não é contra a vernacular arrogância dos hegelianos – ao contrário, considero a arrogância uma condição triste, mas inescapável de toda filosofia que se dirige a alguém, que roga a alguém por alguma outra coisa que não essa que está aí. Alguns exageram, mas, também aqui, pouco se me dá. Podemos mesmo admitir, com alguma maldade, que Hegel estava certo (ou pelo menos era coerente) ao denunciar a arrogância de seus interlocutores sem considerar a possibilidade da sua própria. Isso porque, na economia de sua automitolgia, de sua imagética e de sua surdez, o idealismo especulativo não dirige nenhum apelo para fora de si: não há estritamente falando qualquer desejo de diálogo, não ocorre nenhuma ad-rogatio. É por isso que ele pode ser tão sedutor para os que foram continuamente silenciados: o discurso hegeliano alimenta-se de si mesmo num ímpeto de autodevoração que se impõe, aparentemente, como uma alternativa à necessidade de ser ouvido. Por isso ele pode escalar os ápices da autorreferencialidade e, simultaneamente, acusar a vaidade dos outros. E aqui, igualmente, Hegel não funda nenhuma nova ordem: a preocupação em pensar um discurso filosófico isento da vaidade e da arrogância representa um sonho ético bem antigo, sempre carregado de suas invisibilizadas estruturas de violência. Seria difícil percorrer os textos que construíram o discurso iluminista ao longo do século XVIII sem nos depararmos com a repulsa esclarecida vivida pelo bom senso intelectual. Diante dele, diante de todos esses Gelehrten, learned men e philosophes, defensores do comedimento, o arrogante é quem, ao se olhar no espelho da razão não consegue, precisamente, se articular em uma identidade cujos parâmetros são sempre dados pela harmonia do todo.
Sabemos, além disso, que foi Kant, já em seus últimos anos de vida, quem dedicou um pequeno texto a discutir a ideia de uma certa tonalidade à qual todo discurso filosófico deveria se submeter. Trata-se do opúsculo Sobre um recente tom de superioridade adotado na filosofia, de 1796, uma espécie de resposta contra Johann Georg Schlosser, cunhado de Goethe, que havia publicado, um ano antes, uma tradução sua das cartas de Platão, cuja introdução e notas de rodapé atacavam, sem mencioná-la nominalmente, a filosofia de Kant. Segundo Schlosser, a purificação da razão operada pela “nova filosofia alemã”– leia-se aí a Crítica da razão pura – não teria atingido o objetivo último da filosofia, a saber, tornar-nos “mais felizes, mais verdadeiros e melhores”. Por isso, uma “Crítica da Razão”, seguindo esse novo modelo, não seria exatamente pura, mas “castrada [ou emasculada: entmannen]”. Não é, portanto, por acaso, que reencontremos aqui o tema da castração ao debatermos o da voz.
Agora imaginem que essa que levanta a voz com um tom um pouco mais raivoso, ou mais cansado, mais impaciente, seja uma pessoa racializada, uma mulher, uma bixa. Imaginem a indignação dos castrados. Agora apaguem seus cigarros.
(Vocês conhecem aquela piada da seção 369 da Enciclopédia de Hegel? Ela diz assim: “[...] por causa da identidade originária da formação [Formation], no fundamento das partes sexuais masculina e feminina repousa o mesmo tipo [Typus], ainda que, a uma ou à outra, uma ou outra parte fazem o essencial: na mulher, necessariamente o indiferente, no homem, o separado, a oposição. [...] O homem é, então, através dessa diferença, o que age [das Tätige]; a mulher, no entanto, é o que acolhe [das Empfangende], pois ela permanece em sua unidade não desenvolvida”. Deixo aqui, aleatoriamente, alguns termos em alemão para fazer aquela performance da autoridade acadêmica).
Já vi muitos casos de mulheres defendendo Hegel, incluindo a Judith Butler e a Angela Davis, que, sob muitos aspectos, são muito interessantes. Mas nesse ponto eu prefiro continuar com a Denise Ferreira da Silva, com a Spivak e com a Carla Lonzi. Aliás, quem não leu o Sputtiamo su Hegel, que saiu agora em português como Cuspindo em Hegel (uma opção de tradução péssima, que apaga a voz de comando do original, Cuspamos em Hegel), deveria considerar fazê-lo.
Já vi também casos de professores que fazem toda a performance do esquerdomacho anarcohegeliano (Independência ou morte?), que são muito bem-sucedidos na divulgação de suas ideias, inclusive entre pessoas trans, pretas e pobres – essas últimas geralmente acabam se dando muito mal nas polêmicas de onde aqueles primeiros saem isentos, com o bigodinho amarelado de Craque e a carinha lambuzada de iogurte grego e cocaína. Esse tipo relativamente recente, contudo, continua articulando cripticamente o mesmo heteronormativismo, a mesma estética do sujinho-de-ipanema (não se trata de uma questão geográfica, evidentemente), a mesma glorificação da autodestruição ensaiada e asséptica da pasmaceira markfisheriana. Basta notar a relação de corte disfarçada de groupies que ele fomenta. Dirão que sou paranoico, o que mais uma vez concedo, com prazer: isso não significa que não estejam atrás de mim. Mas cá entre nós, só acha brilhante a análise que o Mark Fisher faz da música como objeto filosófico quem nunca ouviu Clementina de Jesus com o ouvido certo, ou nunca leu o Ligeti com o olho certo – ou seja, quem é ruim da cabeça e doente do pé, ao mesmo tempo.
(E a Maria Rita Kehl, hein? Alguém avisou à família?)
rapaz, que texto